Quem desperta o melhor em mim

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Tenho pensado muito sobre amizade ultimamente. Talvez seja a idade, talvez seja o fim de ano se aproximando, ou seja simplesmente o acúmulo de décadas observando como essas relações se transformam com o tempo.

Henry Ford certa vez disse que o melhor amigo é o que desperta o que temos de melhor, mas, preciso confessar: não tenho um melhor amigo. Tenho bons amigos. E descobri, ao longo desses anos todos, que o melhor amigo é aquele que está comigo naquele momento específico, despertando em mim exatamente o que eu preciso naquela hora.

A alegria incomum de estar entre amigos

Há algo que chamo de alegria incomum quando estou com meus amigos. É um sentimento de repouso, de poder ser completamente autêntico sem medo de julgamentos. Posso falar bobagens, contar piadas ruins, ser informal. Ninguém está preocupado em mostrar a roupa ou acessórios mais bonitos ou impressionar alguém.

É descansativo. Sim, inventei essa palavra porque não encontrei outra que descrevesse melhor. Esses encontros recarregam minha bateria de uma forma que poucas coisas conseguem.

Os círculos que me formaram

Ao longo da vida, construí diferentes círculos de amizade, cada um com seu sabor particular.

Meus amigos motociclistas são os mais simples de reunir. Quarenta anos de estrada juntos criam laços que dispensam formalidades. Basta combinar um lugar e uma hora, e lá estamos nós, falando de motos, de viagens, de liberdade.

Os amigos dos tempos da Riviera de São Lourenço carregam mais de trinta anos de história. Eram os tempos da casa na praia, dos esportes náuticos, das famílias se misturando naturalmente. Encontros informais onde todos se acolhiam, onde os filhos adolescentes “aprontavam juntos”, enquanto os adultos compartilhavam histórias e risadas.

Tenho também os amigos de negócios, aqueles com quem construí projetos e empresas. Os encontros são mais formais, mas a base é a mesma: gostar genuinamente um do outro, respeitar, confiar.

E então há os amigos raiz, dos tempos do Colégio Dante Alighieri. Alguns estão comigo há mais de 75 anos. Setenta e cinco anos! Acompanharam toda minha jornada, viram meus erros e acertos, estiveram presentes nos momentos mais importantes. A preocupação e o carinho mútuos que compartilhamos são de uma profundidade que só o tempo pode criar.

Gosto de pensar que a amizade é como uma planta. Você precisa regar, alimentar, cuidar. E isso significa se encontrar, dar atenção, trocar energia.

Tenho um amigo que está tentando marcar um jantar comigo há mais de dois anos. A vida complica, os compromissos se acumulam, e aquele encontro vai sendo adiado. Mas a persistência dele em tentar é, por si só, um ato de cultivo da amizade. E eu valorizo isso imensamente.

Uso WhatsApp, faço ligações, mando mensagens. Não é a mesma coisa que um abraço, claro, mas é uma forma de dizer: você ainda importa para mim, ainda penso em você, nossa amizade ainda está viva.

O que a pandemia nos ensinou

A pandemia mudou muita coisa. Cada um fez seu campo, saiu para outros modos de vida. Os encontros que antes eram naturais se tornaram difíceis de organizar. Nossa tradicional “Quarta sem Lei”, que reunia de 10 a 20 motociclistas toda semana em um bar, nunca mais voltou a ser a mesma. As festas de fim de ano, que eram uma bela celebração em um lugar aconchegante, agora enfrentam o silêncio dos convites sem resposta.

Muitos amigos adquiriram o hábito de confraternizar com suas famílias fora de São Paulo. É bonito ver as famílias se unindo, mas confesso que sinto falta daqueles encontros que eram parte do nosso ritual.

As festas que celebram a vida

Minhas festas de aniversário de marco, aos 60, 70, 80 anos, foram momentos de alegria indescritível. Eu e Cidinha costumamos planejar essas celebrações com seis meses de antecedência, envolvendo a família toda na organização.

Ver pessoas que não encontro há anos, saber que ainda estão vivas, poder abraçá-las novamente… isso recarrega minha bateria de uma forma que não consigo explicar completamente. É a confirmação de que aqueles laços, mesmo adormecidos pelo tempo e pela distância, ainda existem.

O peso das despedidas e a leveza do cultivo

Com a idade que tenho, a realidade da doença e da morte de amigos se tornou mais frequente. É uma parte natural, embora dolorosa, do processo de envelhecer. Vou aos velórios, às missas de sétimo dia. Não por obrigação, mas porque é minha forma de honrar aquelas amizades, de dizer um último adeus, de estar presente para as famílias que ficam.

Cada perda me lembra da importância de cultivar as amizades enquanto há tempo. De não deixar para amanhã aquele telefonema, aquele encontro, aquele abraço.

Vejo pessoas da minha idade que se sentem velhas, que desistiram da alegria. Eu escolhi diferente. Escolhi continuar cultivando amizades, continuar me encontrando com pessoas que me fazem bem, continuar celebrando a vida.

Porque no final, amizade é um ecossistema que precisa de retroalimentação constante para funcionar. Se você não alimenta, se você não rega, se você não cuida, ela murcha. E a solidão pode alcançar até mesmo as pessoas mais bem-sucedidas.

Henry Ford não está errado, nosso melhor amigo é aquele que desperta o melhor em nós. Mas aprendi que esse “melhor amigo” muda conforme o momento, a necessidade, a estação da vida.

Meus amigos motociclistas despertam em mim o espírito de aventura e liberdade. Meus amigos da Riviera despertam as memórias de família e mar. Meus amigos de negócios despertam o empreendedor e o estrategista. Meus amigos raiz despertam o menino que fui e o homem que me tornei. Cada um, no seu momento, no seu jeito, desperta algo essencial em mim.

E talvez seja isso que a amizade verdadeira faz: ela não nos transforma em alguém que não somos, mas desperta as melhores versões de quem já somos. Nos lembra de rir, de ser autêntico, de descansar sem culpa, de celebrar a vida mesmo quando ela dói.

Neste fim de ano, olho para trás e vejo décadas de amizades cultivadas. Algumas se foram, outras permanecem, novas ainda estão por vir. E agradeço por cada uma delas, porque sei que sou a soma de todos esses encontros, dessas risadas, dessas conversas, desses abraços.

Amizade é uma planta. E eu escolho continuar regando a minha, todos os dias, enquanto houver vida em mim.

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